Incentivada pelo Funcultura, a pesquisa buscou entender todo o contexto
que envolve o artesanato feito com fibra de cana-brava, que só existe em Goiana
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O distrito de Ponta de Pedras, situado no município de Goiana, já foi cenário de diversos eventos que marcaram a história pernambucana e até hoje reserva peculiaridades que falam muito sobre sua identidade cultural. Uma delas é o artesanato desenvolvido com fibra de cana-brava, um vegetal típico da região utilizado inicialmente na pesca, através da produção de armadilhas chamadas covo. Mas há alguns anos, no Centro Cultural José Romualdo Maranhão, espaço cultural da cidade, está sediado o grupo Artesanato Cana-Brava, formado por esposas e filhas de pescadores que utilizam a mesma matéria-prima para produzir objetos utilitários e decorativos em fibra, coco, tecido e papel.
Esta história inspirou a equipe do Laboratório O Imaginário, grupo de extensão de Design e Cultura da Universidade Federal de Pernambuco, a desenvolver a pesquisa Mapeamento do Artesanato em Fibra no Litoral de Ponta de Pedras, que contou com incentivo do Governo de Pernambuco, através do Funcultura. A equipe envolve professores, estudantes e técnicos de diversas áreas do conhecimento, integrando à extensão os segmentos de ensino e pesquisa da UFPE.
De acordo com Tibério Tabosa, pesquisador, consultor e facilitador de processos na área da Economia Criativa, responsável pelo projeto, Ponta de Pedras é uma região que O Imaginário já trabalha há um tempo. “São pelo menos dez anos e ao longo deste período desenvolvemos uma série de atividades por lá. O próprio Centro Cultural José Romualdo Maranhão, por exemplo, é um projeto nosso e que foi construído pela prefeitura”, explica ele.
“A gente fez essa pesquisa usando a equipe do Imaginário porque já conhecíamos a área e já tínhamos os contatos. A ideia era desenvolver uma pesquisa no sentido de descobrir os processos, como surgiu, o que tem a ver com a identidade local, a própria coleta da matéria prima, como é feita. A metodologia utilizada é a conhecida como ‘bola de neve’, perguntando a uma pessoa, que falava de outra, e por sua vez citava uma terceira ou quarta”, pontua. O trabalho foi criado a partir da história do trançado, da memória dos mestres artesãos e das suas técnicas tradicionais de produção.
Um fato curioso para a cultura local de Goiana é que a técnica de criar objetos com a palha da cana-brava só existe em Ponta de Pedras. “No início de tudo os moradores locais desenvolviam as armadilhas de pesca que tinham um sentido mais rústico, mais grotesco. Mas foi o trançado do covo que levou a gente à produção da cestaria. A partir dessa técnica foi possível chegar ao que temos hoje. Fomos tentar entender como esse objeto chegou aqui em Ponta de Pedras e percebemos que ela existe em diversas partes do país. Mas apenas aqui é feita com cana-brava”, detalha Tibério Tabosa.
Até o final da década de 90, segundo o pesquisador, apenas duas pessoas faziam esse trabalho, conhecidos como Irmãos Lourenço. Na época, técnicos do Sebrae perceberam o potencial econômico e turístico que essa técnica poderia oferecer para a região, e passaram a incentivar artesãos locais a voltar a trabalharem com esta atividade.
Os Irmãos Lourenço, em parceria com o Sebrae, ofereceram então a um público formato praticamente por mulheres uma oficina com o objetivo de transformá-las em artesãs da cana-brava. “Nossa ideia era gerar emprego e autonomia financeira para elas, numa política que incentivasse a igualdade de gênero”, comenta Tibério Tabosa.
A oficina foi tão exitosa que as mulheres decidiram ser autônomas e criaram seu próprio grupo. Junto a elas, ainda segundo Tibério, O Imaginário tentou incorporar dentro do produto o design, no sentido de agregar valor. “Começamos a fazer então cestarias e produtos derivados, e logo chegamos a conclusão de que essas peças deveriam ter tecidos também. Não demorou para buscarmos estampas e pesquisarmos símbolos que tivessem relação com a comunidade”.
Hoje existe em Ponta de Pedras o grupo Artesanato Cana-Bravado, instalado no Centro Cultural José Romualdo Maranhão e composto praticamente por mulheres que fazem peças de cestaria únicas no Brasil e incorporam ao seu valor de mercado essa multiplicidade de elementos. “Ela é considerada uma das 100 melhores organizações produtivas do país e ganhou por três anos consecutivos o Prêmio TOP 100 Sebrae, voltado às principais iniciativas artesanais do país”, destaca o produtor do projeto.
Outro personagem importante na pesquisa foi Seu Juarez, com mais de 90 anos, 50 deles dedicados ao artesanato – apesar de estar a três décadas longe do ofício. Agora, sua profissão é a de mestre. “Ele passou a ser instrutor de cestaria de uma escola do SESI e a partir daí a coisa começou a se expandir com mais velocidade”, relembra o pesquisador.
Para Tibério Tabosa, com a pesquisa foi possível entender o processo histórico que faz com que as pessoas se organizem para produzir essas peças. “Buscamos entender, na verdade, o conceito do produto ampliado. O que a gente quer é vendê-lo no final das contas, e para isso é preciso contar uma história. Como ele veio? Como evoluiu? Como é feito? Como interfere na economia da comunidade? Como é essa questão de gênero com a participação maciça das mulheres? Tudo isso agrega valor. Esse relatório gera argumentos e elementos pra formar essas histórias em cima do artefato, no sentido de vê-lo como um produto ampliado e, por conseguinte, dar a ele um valor de mercado maior e aumentar a renda daquela comunidade”, avalia o pesquisador.
A cana-brava é um vegetal que nasce naturalmente nas áreas mais úmidas. Uma das observações que a pesquisa identificou é que esta matéria-prima está se acabando. Primeiro, porque não se cultiva. Segundo, por conta do desmatamento ou pela construção indevida de casas em áreas alagadas. Com isso, os artesãos e artesãs estão tendo, então, que sair pra buscar o material em áreas mais distantes e perigosas, com muita lama e bichos peçonhentos.
“É um diagnóstico importante, porque deixa o poder público alerta a esse problema para que assim possa desenvolver iniciativas que evitem o fim dessa técnica. Neste sentido, uma das ideias que nós da Secretaria de Cultura de Pernambuco sugerimos para a Secretaria de cultura de Goiana foi encontrar uma área para criar reserva deste vegetal”, explica Breno Nascimento, assessor da Coordenadora de Artesanato da Secretaria de Cultura de Pernambuco.
A discussão sobre o futuro do artesanato com cana-brava envolve também outros atores, como os próprios artesãos e artesãs locais, representantes do Conselho Estadual de Política Cultural, do Funcultura e do Conselho Municipal de Goiana, no sentido de pensar políticas que garantam o fornecimento dessa matéria-prima. “A pesquisa foi desenvolvida entre setembro de 2016 passado até abril deste ano e apresentamos o relatório final no inicio de maio. Foi um momento de prestar contas ao Funcultura, mas aproveitamos o ensejo pra convidar a comunidade, técnicos da Fundarpe e da Secult-PE, do Sebrae, da Prefeitura de Goiana e dos conselhos de cultura para compartilhar estes resultados”, destaca Tibério Tabosa.
Na opinião de Breno Nascimento, este projeto aborda um aspecto do artesanato muito importante que é o mapeamento. “A gente não tem muita informação organizada sobre as tipologias de artesanatos pernambucanos. E é interessante também porque cada vez que fazemos algo parecido redescobrimos aspectos que estavam à margem das pesquisas e metodologias. Esse produto servirá para que a gente possa pensar em soluções que garantam a sobrevivência dessa atividade local”, opina.
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Funcultura
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